terça-feira, 26 de maio de 2015

O Dever de Desobedecer


Pré-requisito: Nenhum

Autor: Gustavo Spina

Em nossas vidas, devemos constantemente tomar decisões. Algumas delas são totalmente arbitrárias, e temos a total autonomia do que escolher, realizando, de fato, o ato de decidir. Por outro lado, vivendo em um mundo capitalista e em uma sociedade cheia de valores morais e padrões comportamentais, em muitas destas decisões nós acabamos sendo forçados a seguir o caminho ditado pelas convenções sociais ou mesmo tendo que acatar ordens e cumprir regras, quase que sem possibilidade de uma escolha contrária ou diferente. Este texto é uma discussão razoavelmente aprofundada sobre o quão autônomos podemos ser, socialmente, e qual o limite entre o dever de obedecer e o dever de desobedecer.

Começando pelos aspectos sociais puramente convencionais, os quais nos influenciam nas tomadas de decisões através da pressão social ou discriminação por parte da grande massa, podemos fazer algumas inferências interessantes. Que nós não somos quem realmente gostaríamos de ser; se fôssemos completamente LIVRES para escolher tudo, isto é inegável. O sistema monetário e capitalista, que rege o mundo em que vivemos, nos força a escolher caminhos, na maioria dos casos, contrários aos que realmente gostaríamos de escolher, devido à necessidade do acúmulo de capital para que se possa viver, ou mesmo, sobreviver.

Deixando esta parte da discussão para os parágrafos finais deste texto, lembrando que outros textos tratam mais profunda e especificamente das implicações do capitalismo em nossas vidas; as convenções sociais, desde as mais sérias e importantes como a legislação vigente e o código penal, até as mais casuais como o senso comum, também nos induzem a traçarmos caminhos diferentes daqueles que realmente gostaríamos. Não raramente podemos observar o quanto as pessoas, para não dizer nós mesmos, mudam conforme o grupo de indivíduos o qual ela está envolta, mudando seu comportamento, atitudes e até opiniões, como dizem corriqueiramente: “dançando conforme a música”.

Neste nível de tomada de decisões, podemos nos considerar autônomos, podendo categoricamente escolher entre gostar ou não gostar de algum programa de televisão, entre elogiar ou criticar alguma obra de arte, ser fã ou detestar alguma celebridade etc. Todavia, não podemos negar que as convenções sociais, desde já, nos influenciam em maior ou menor grau. Um bom exemplo que ilustra este fato é o do indivíduo que não gosta de futebol, no Brasil, mas que procura sempre saber, ao menos os resultados dos jogos, para poder ter o que conversar com seus amigos de trabalho, fanáticos pelos seus times, na hora do almoço.

E isto fica mais sério e danoso conforme discutimos e nos aprofundamos. As convenções sociais nos influenciam também em tomadas de decisões mais importantes, tais quais o modo como criamos nossos filhos, a escolha de nossas carreiras profissionais, a composição de nosso estilo de vida, a escolha de nossos cônjuges e até a prática dos preconceitos em larga escala, pois não podemos nos esquecer que, há aproximadamente quinhentos anos atrás, era extremamente convencional, no dia-a-dia, exclamar, com toda a certeza que nos coubesse, que negros nasciam para ser escravos.

Neste ponto do texto, é interessante direcionarmos o foco da discussão para o modo pelo qual somos forçados a tomar decisões, ou deixar de toma-las, pela influência das LEIS. As leis, apesar de impostas pelo governo, a todos os cidadãos (na teoria) de um determinado território, não deixa de ser uma convenção social, onde todos têm o dever de cumpri-las, podendo ainda optar pela escolha da desobediência, entretanto, sob a pena de certas consequências, igualmente convencionadas socialmente, traduzidas pelo código penal. Neste nível de tomada de decisões, ainda podemos, ainda que entre duas aspas bastante expressivas, nos considerar “autônomos”, podendo escolher entre obedecer ou não as leis. Todavia, uma vez que convencionamos penas para quem as descumprir, isto nada mais é do que convencionar uma obrigatoriedade, não nos deixando outra escolha além de cumprir a legislação vigente.

O fato de as leis serem ou não uma convenção social, no sentido de questionarmos a participação da população em sua criação e validação, abre um pequeno parênteses: Para enxergarmos o ponto onde nós, o povo, participamos ativamente da confecção e validação das leis de nosso país, basta entendermos como funciona a política em si. A partir do momento em que concordamos com o sistema político, sobretudo o modelo democrático de república vigente no Brasil e em centenas de outros países do mundo, onde nós elegemos nossos governantes por meio do voto; nós estamos concordando que os políticos eleitos são nossos representantes, e que devem tomar, por nós, as decisões políticas de nosso país. Dessa forma, nós estamos ativamente participando e somos os responsáveis, indiretamente, por todas as decisões políticas e legislativas de nosso país, podendo ainda, no caso de grande discordância ou queda de representatividade por meio de algum dos políticos eleitos, nos manifestar em forma de protesto, reivindicando o que desejarmos.

Tendo entendido, então, que a legislação e sua composição, bem como sua validação, são de fato uma convenção social - a qual nós participamos ativa e indiretamente - devemos agora entender que isto não implica em sua qualidade e unânime aceitação. A democracia é um sistema onde todos decidem, mas quem vence é a maioria. Isto implica, em alguns casos, em uma divisão, ou rivalidade, por meio dos maiores e, por conseguinte, mais decisivos grupos partidários, fenômeno que está ocorrendo neste momento, aqui no Brasil, após uma das eleições presidenciais mais divididas da história deste país. E este fato se estende por todas as consequências desta eleição, acarretando sempre em uma maioria satisfeita com as decisões ou realizações dos representantes os quais ela concordou serem eleitos, acompanhada por uma insatisfação da minoria democraticamente derrotada. Chegamos, então, ao porque da inexistência de uma unânime aceitação da legislação, que apontamos no início deste parágrafo.

Por fim, para enxergarmos o fato de que apesar das leis, em conjunto com o código penal, serem uma convenção social, isto não acarreta em sua qualidade moral e validação perante os olhos de uma “justiça perfeita”, precisamos olhar para o passado. A escravização de negros, já citada neste texto, era legal, no sentido de legalizada (obviamente), bem como, e este exemplo não poderia ficar de fora, o Nazismo, na Alemanha de Hitler, entre outros episódios deprimentes de nossa triste história. Desta forma, sem precisar discorrer muito sobre o assunto, podemos refletir por alguns instantes e concluir, sem muito esforço, que o fato de ser legal perante o Estado, não significa em ser moralmente correto, tampouco, justo.

Partindo dos aspectos sociais para os aspectos monetário e hierárquico, podemos fazer outras interessantes inferências. Como citado em um dos parágrafos iniciais do texto, o sistema monetário e capitalista nos insere em uma sociedade a qual devemos acumular capital, ou dinheiro, para poder viver, ou ao menos, sobreviver. Assim, a maioria de nós, cidadãos comuns, nos adequamos socialmente como trabalhadores, fazendo do trabalho o nosso meio de ganhar dinheiro para que possamos trocá-lo pelo que necessitarmos e desejarmos. Neste sistema, está presente também a hierarquização, o que se traduz, de forma extremamente simplificada, na relação ‘empregador-empregado’, onde somos subordinados a alguém hierarquicamente superiores a nós, dentro de uma mesma empresa.

Fazendo a conexão desta pequena (e um tanto quanto óbvia) explanação com o assunto principal do texto, esta hierarquização nos obriga também, em diversos casos, a tomarmos decisões diferentes das quais tomaríamos, se as posições fossem invertidas, ou simplesmente se ela não existisse. Ao assinarmos um contrato de trabalho, nós estamos aceitando cumprir um dado conjunto de regras e acatar um dado conjunto de ordens de nossos superiores, cientes de que o não cumprimento de uma ou mais destas regras ou ordens pode acarretar na quebra ou rescisão deste contrato. Entretanto, em alguns casos, obedecer a uma dessas regras ou ordens, pode acarretar em outras consequências moralmente incorretas ou injustas, e este é o principal ponto deste texto: é neste momento que devemos saber qual o limite em que o nosso dever de obedecer passa a ser o dever de desobedecer.

O que fazer quando se é um motorista de ônibus, com o dever de não deixar o seu posto de trabalho em hipótese alguma, ao presenciar uma situação a qual alguém necessite de sua ajuda, como uma mulher sendo assaltada por jovens delinquentes, ou uma pessoa idosa com dificuldade de permanecer em pé devido a uma forte chuva? O que fazer quando se é um policial, com o dever de acatar as ordens de seu superior, ao receber a ordem de disparar balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e até mesmo surrar um pequeno grupo de professores, que estão ali reivindicando seus direitos, pacificamente? O que fazer quando se é uma advogada, com o dever de defender a causa de seu cliente, ao saber que ele fora realmente o autor do crime o qual ele deseja ser inocentado? Obedecer ou desobedecer, qual é o seu dever?

A necessidade de um emprego, diretamente ligada à necessidade de ganhar dinheiro infelizmente faz, na maior parte dos casos, com que nós decidamos, ainda que à contra gosto, obedecer e acatar tais ordens que implicam nestas e em diversas outras consequências moralmente erradas e injustas. E é exatamente por que nós “escolhemos” obedecer, que estas ordens continuam a ser dadas, e estas regras continuam a ser impostas, pois quando nossa ética, moral e caráter forem maiores e mais importantes do que nossa situação monetária, serão as regras e ordens que se adequarão a nós, e não o contrário.

Enfim, vimos neste texto que, apesar de sermos responsáveis por todas as nossas decisões, em muitos casos não somos livres para tomar a atitude de decidir, sendo influenciados, persuadidos ou mesmo forçados a seguir um determinado caminho o qual nem sempre é o que gostaríamos de seguir. Investigamos quais aspectos sociais nos influenciam, em maior ou menor grau, em nossas tomadas de decisões e o quanto isso pode ser sério e danoso. Por fim, discutimos sobre o aspecto monetário e hierárquico, aprendendo a enxergar o limite que existe entre o nosso dever de obedecer e o de desobedecer, hierarquizando, não mais a nós mesmos, mas sim as nossas prioridades, não mais sendo moldados pelas regras e ordens, mas moldando-as a nós, mudando a forma de se portar perante as situações, tornando a sociedade um pouco mais coerente, enxergando a linha tênue que existe entre nós e O OUTRO LADO DA MOEDA.

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